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21/04/2012

A mulher de vestido

Que me perdoem as feministas: ser feminina é fundamental. Ser feminina é deixar os cabelos longos soltos ao sabor do vento, para que por entre eles sopre desautorizadamente, ardendo os homens de inveja pelo entrelaçamento envolvente. Ser feminina é sorrir com os lábios pintados de batom beijado narcisisticamente na frente do espelho, num belo ritual de ajuste e preparação para o mundo. Ser feminina é sorrir com os mesmos lábios de batom, agora desbotados por outros em beijos autorizados ou roubados, permitidos ou proibidos, reais ou imaginários. Ser feminina é realçar pela pintura leve e pelos adereços da boa vaidade a perfeição natural da mulher, que a coloca sempre em destaque, fazendo menor até mesmo a admirável arte de um Miró ou um de Botero.

Ser feminina é dizer sem pronunciar. É gritar silente e silenciar em voz alta. Ser feminina é significar por múltiplas linguagens: olhares, sorrisos, abraços, lábios, pernas. Ser feminina é dar vazão a um flerte que surge do nada, sem razão de ser, numa improbabilidade levada a efeito por um bem-humorado destino, que por puro diletantismo cruza na geografia dos fatos a estrada da mulher no caminho do homem e vice-versa. Ser feminina é constatar sem culpas que a vida chega e não pede licença. Apenas chega, entra, senta à mesa, compartilha o pão da ceia e dorme no sofá.

Ser feminina é pensar como mulher. Desimitar os homens com seus dispensáveis modelos, seus inúteis paradigmas, seus inservíveis padrões. É usar o sexto sentido para escolher o caminho, valendo-se da intuição, esse toque de gênio de Deus em seu retoque final no mais gracioso dos seres. Ser feminina é jurar juras e chorar lágrimas de amor; é reclamar quando não compreender seus porquês e quando vir ignorados os seus mais íntimos desejos, as suas menores – mas não menos importantes – aspirações da vida a dois, eternas ou efêmeras. Mas ser feminina é também suspirar de exultação e plenitude quando o que agrada e deseja bate à sua porta sem avisar, convidando-a a reviver seus sonhos construídos na infância dos contos. Suas quimeras antigas, falsamente escondidas pela adulteza que veio, despertarão levemente como a bela adormecida, desde que se gire a chave certa no momento perfeito, abrindo a porta de um mundo novo de faz-de-conta real.

Ser feminina é ser racional e passional. Racional com as responsabilidades; passional com as irresponsabilidades. É, vez por outra, trancar a madre em si na masmorra mais alta da torre mais alta do monte mais alto que existe e jogar a chave fora, no fosso mais fundo dos jacarés mais violentos, de onde ninguém ousará tentar regatá-la. Ser feminina é acorrentar a mulher de limites e alforriar a louca do calabouço, habitante de seus secretos e inenarráveis desejos, quereres e tentações. A louca na mulher feminina anseia sair por aí, conhecer novos campos, sentir novos cheiros, viver nova vida, gozar novos prazeres, singrando novos mares como se fosse uma nau desprendida da fragata dos audazes navegadores do Séc. XVI. Madre e louca: o chaveamento da dualidade constitutiva da mulher é o segredo mais bem guardado do universo. Todos os homens o almejam, raros felizes sucedem em encontrá-lo, raríssimos sábios o guardam para si. Para a mulher, diferentemente do que se diz, saber guardar segredo é exercitar a feminilidade, aquilo que sempre será só seu e de mais ninguém. Para o homem sábio, guardar segredo é viver a sua porção mulher, quase sempre resguardada numa subutilização de uma fantástica ferramenta de compreensão de mundo, de condução da vida. Guardar segredo é ser mulher.

Ser feminina é ser menina com o Sol e mulher com a Lua. É morder os lábios nos abraços espremidos. De dia, os seus. À noite, os nossos. É, vez por outra, trocar o dia pela noite. Ser feminina é vitimar o homem com seu imbatível exército de desejo e, ao mesmo tempo em que conquista, se deixar seduzir e ser invadida pelo homem eleito, numa batalha incomum em que ganham os dois lados. Ser feminina é varrer o rosto masculino com seus cabelos em movimentos, imitando as ondas do mar, no vai e vem ritmado de corpos transpirantes. Ser feminina é, com os mesmos cabelos que os ventos beijam, sufocar deliberadamente a face masculina, causando inveja ao próprio vento e ao mundo, se eles, pobres ignorantes, pudessem saber que um dia que a cena existiu.

Ser feminina é não ter medo do prazer. Seja o de uma casquinha de chocolate gelado derretendo na mão ou o de um corpo suado derretendo na cama. Seja o de um toque comportado à luz do dia com mil testemunhas ou o de um roçar atrevido ao testemunho somente da meia-luz e do querer mútuo. Ser feminina é cantar. Cantar no chuveiro, no carro, no banho, no amor. É fazer do som que sai de sua boca a trilha sonora de seus momentos, numa alegria escandalosa de deliciosos suspiros cadenciados, regidos pelos movimentos não das mãos de um maestro, mas de corpos bailarinos do mais belo dos balés da natureza. Ser feminina é amar ao som das Bachianas de Villa-Lobos. Viajar com elas à placidez do encontro consigo, oferecida pelo momento da presença do seu escolhido aconchegado no calor de seu corpo.

Ser feminina é usar vestidos. A mulher num vestido mostra ao mundo seu estado mais feminino, depois, claro, do seu estado natural. São nos vestidos que as mulheres autenticam sua feminilidade, por isso os escolhem com capricho em ocasiões especiais. Nada contra jeans e blusas brancas com mangas ou com alças de laços. Mas quando se veste num vestido, a mulher transborda feminilidade, encharcando os olhos dos homens de uma querência vulcânica. Ser feminina é vestir um vestido florido, daqueles cujos panos que acortinam seu corpo dançam ao sopro do ar, nele deixando uma pergunta intrigante: onde terminam as flores e onde começa a mulher? Saber trajar um vestido é uma arte da feminilidade; saber despi-lo, uma arte da masculinidade. Conjugar o encadeamento das duas coisas é uma arte do destino atilado.

Foi uma mulher num vestido a inspiração desse texto. Ela inspirou outras coisas não ditas, interditas e interditadas. Pobres dos homens que não enxergam o sublime na mulher de vestido e que ignoram, por inocência ou incapacidade, seu poder transformador sobre nós.



S.



Sérgio Augusto Freire de Souza

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